Göbekli Tepe, Turquia
A minha geração estudou história sob a influência do arqueólogo V. Gordon Childe, responsável pela teoria da Revolução Neolítica, que explicava que a civilização, como a conhecemos, havia sido consequência da agricultura. De bandos de nômades havíamos passado a uma vida mais sedentária, reunida à volta de vilarejos e cidades, cultivando trigo, cevada e domesticando animais. A razão para o aparecimento de aglomerados urbanos era simples: precisávamos tocar as quintas, as plantações, e garantir comida o ano inteiro. Os ajuntamentos facilitavam a defesa dos interesses grupais: garantir que as colheitas não fossem parar em mãos inimigas ou roubadas por bandos famintos, ainda nômades, que cruzavam a terra.
Parte
do estabelecimento dos seres humanos em cidades e aldeias justificaria
assim o aparecimento da hierarquia de comando, de principados, reinos,
de classes sociais dominantes e da religião organizada. Essa visão
antropológica do nosso desenvolvimento era abrangente o suficiente para
que não a questionássemos. Além disso ela explicava muito do que não
conseguíamos explicar de qualquer outra forma. Foi só na década de
1990, com as primeiras descobertas arqueológicas em Göbekli Tepe,
na Turquia, que evidências de uma outra possibilidade começaram a
surgir. E vieram tão numerosas e de tantas formas diferentes, que a
necessidade de revermos de maneira drástica o que imaginávamos ser o
desenvolvimento dos seres humanos no Neolítico se fez necessário. A
revista The National Geographic Magazine deste mês foca nas conseqüências das descobertas de Göbekli Tepe: a organização religiosa dos seres humanos talvez não tenha vindo como consequência da Revolução Neolítica, mas ao contrário: a necessidade de uma religião organizada pode ter dado origem à agricultura.
Stonehenge, Inglaterra
É uma reviravolta inesperada e fascinante.
Até evidência em contrário, o aparecimento da religião organizada entre os homens aconteceu na Turquia, em Göbekli Tepe, mais ou menos há 11.000 anos atrás. As fundações desse templo religioso no topo de uma montanha, a 15 km de Şanlıurfa, no Sudeste da Turquia, são incontestáveis. Haveria outros templos mais antigos? Não sabemos. Por ora, a civilização começou aí. Göbekli Tepe é um templo extraordinário. Ou melhor, uma série de templos dos quais muito pouco está escavado. Inicialmente havia sido comparado a Stonehenge, na Inglaterra, por causa de seu desenho quase circular de pedras variadas. Mas a semelhança com o sítio na Inglaterra para na forma circular. Göbekli Tepe foi construído muitos milênios antes de Stonehenge [que foi construído por volta de 2.500 anos aC, ou seja há 4.500 atrás]. Além disso, o complexo arqueológico turco é mais sofisticado. Suas pedras gigantescas são cortadas com precisão e apresentam baixo-relevos de animais variados: cobras, raposas, escorpiões, javalis e bandos de gazelas. Construído uns há 11.600 anos, e 7.000 anos antes das pirâmides do Egito, Göbekli Tepe prima por maior sofisticação na construção do que se imaginava para a época, quando comparamos este a outros sítios posteriores. Hoje, é considerado o primeiro grande monumento arquitetônico da humanidade.
Ilustração de bandos de nômades, como seriam os homens do neolítico
Como então Göbekli Tepe se encaixa na chamada Revolução do Neolítico,
proposta por Childe? Não se encaixa. Aquela época importante quando a
agricultura tomou conta da nossa vida no planeta, aqueles milênios em
que as culturas nômades dedicadas à caça e pesca passaram a plantar e
cultivar os animais, não parece se refletir no primeiro grande templo da
humanidade. E isso é só uma das partes desse quebra-cabeças.
Mas o que foi achado em Göbekli Tepe para
nos fazer questionar o que parecia certo e lógico? Localizado na maior
colina em toda área, por quilômetros e quilômetros, esse templo
consiste de 20 câmaras no subsolo que têm um grande número de pedras de
calcário em forma de T. Muitas dessas pedras e pilares foram decorados
com o desenho de animais do campo, em relevo, cinzelados. As pilastras
estão organizadas em círculos de pedras, — quatro foram escavados até
agora. Cada círculo tem não mais do que 30 m de diâmetro. As pedras
que os formam são de aproximadamente 6 metros de altura, pesando entre
12 a 18 toneladas.
Göbekli Tepe, Pedra do sol (nome dado pelos arqueólogos para distinguí-la de outras pedras)
No
entanto, não há vestígios de habitação permanente de seres humanos no
local. Nem mesmo rastros deixados por acampamentos de longa duração, já
que nessa época não existiam ainda vilarejos, nem cidades, nem
aglomerados humanos de maior complexidade. Os seres humanos eram
nômades, sobrevivendo da caça e pesca e de colheita de frutos da
natureza. Então como construir um monumento desse porte, se era preciso
um grande número de pessoas, organizadas, que exercessem diferentes
tarefas? As pedras da construção de Göbekli Tepe são
encaixadas precisamente, têm formas específicas e eram transportadas de
longe, para este local pesando em média 15-16 toneladas cada. Só isso
exigiria uma organização muito mais complexa do que creditamos nossos
antepassados de poderem ter exercido, porque tudo isso foi feito numa
época em que os seres humanos não conheciam a escrita, o metal, a
cerâmica ou a roda.
O
que causaria esse grande esforço para se construir um templo, num lugar
de tão difícil acesso? O que havia levado esses povos a construir algo
tão ambicioso? E mais estranho ainda: a enterrá-lo propositadamente
depois de algum tempo e abrir um outro templo circular um pouco mais
adiante, e ao fim de um determinado tempo, enterrá-lo e assim por
diante? Acredita-se haver uns 20 a 40 templos circulares em volta de Göbekli Tepe. Como o arqueólogo responsável Klaus Schmidt do Instituto de Arqueologia da Alemanha imagina: “bandos
de caçadores teriam se juntado no local esporadicamente, através das
décadas de construção, vivendo em tendas feitas de peles de animais e
caçando os animais locais para alimento”.
Göbekli Tepe, vista de cima
Os
pilares, as colunas de pedra, foram colocados em círculos, num desenho
comum a todos. São pedras de calcário, como grandes colunas, ou grandes
Ts. No meio de cada círculo dois pilares. As pedras podem ou não ser
decoradas com animais estilizados, grande parte deles animais perigosos:
escorpiões armados para o ataque, javalis agressivos, leões ferozes.
Não se sabe ainda a razão, mas após uma ou duas décadas, essas
construções eram regularmente enterradas, com todos os pilares sob
terra, e novos círculos eram construídos dentro do círculo que foi
enterrado, com novas pedras. Às vezes até um terceiro círculo era
organizado. Aí então o grupo todo era enterrado, e um novo círculo,
mais adiante era construído. O local foi construído e reconstruído com
círculos de pedras por séculos e séculos. E ainda mais intrigante: a
medida que os séculos passavam as construções ficaram cada vez piores.
As pedras menos decoradas, com corte mais rústico, e tudo organizado de
uma maneira menos cuidadosa. Ao longo dos séculos o povo que construiu
esses templos se tornou cada vez menos apto a fazê-lo. Os esforços de
construção pararam finalmente por volta do ano 8.200 aC.
Göbekli Tepe
Porque
nenhuma habitação foi encontrada, o templo parece ter sido construído
com um único objetivo: um centro cerimonial. Os ossos achados nos
canteiros arqueológicos, que mostram o que era consumido durante a
construção desses círculos, são ossos de gazelas e outros animais
caçados muito longe dali e mandados para o local para servirem de
alimento. Não havia nenhuma fonte de água natural no lugar.
Evidentemente havia necessidade de uma boa organização para que essa
construção fosse feita e, no entanto, não foram achados ainda quaisquer
vestígios de alguma estrutura social com mandantes e mandados. Quem
organizava essas centenas de pessoas necessárias para cinzelar, erguer e
arranjar as pedras necessárias? Klaus Schmidt lembra de maneira
bastante enfática o que é tão intrigante: “Descobrir que povos de caçadores, pescadores e apanhadores de frutos foram capazes de construir Göbekli Tepe é como descobrir que alguém havia construído um avião 747 com um estilete”. E no entanto, lá está, o templo fora do contexto temporal a que lhe atribuímos.
Câmara em Göbekli Tepe
Mesmo que V. Gordon Childe tivesse sido abrangente demais nas suas teorias sobre a Revolução Neolítica,
é preciso não descartarmos o fato de que foi a agricultura que nos
permitiu viver agrupados em aglomerados, aldeias, cidades, reinos. Com
a agricultura também conseguimos prolongar as nossas vidas e chegar a
um grande crescimento populacional. E poder plantar para colher não é
um passo pequeno de desenvolvimento. Mesmo que os homens neolíticos
conseguissem proteger um pedacinho de terra em que o trigo ou cevada
selvagens estivessem crescendo, suas sementes quando maduras se
comportavam de maneira diferente das sementes dos grãos domesticados.
Isso só foi conseguido milhares de anos mais tarde. Os grãos das
espécies selvagens se soltam da planta e caem no chão tornando uma
tarefa quase impossível coletá-los no ponto preciso de amadurecimento.
Em termos de genética, a verdadeira agricultura de grãos só se deu
quando uma área bastante grande de terreno pode ser dedicada ao cultivo
de plantas que já haviam sofrido alguma mutação, deixando que os grãos
maduros permanecessem nas plantas para a colheita.
Agricultura
demanda organização, perseverança, disciplina e estratégias de longo
prazo com relação ao retorno sobre o investimento do trabalho. Como é
um passo complexo aconteceu através de milhares de anos, quando povos
nômades co-existiram com os sedentários. Para que se tenha sucesso na
agricultura é necessário defender o investimento contra a invasão
territorial de animais e de outros seres humanos. O trabalho se torna
cooperativo e relativamente complexo, envolvendo um grupo social que
exige uma estratificação, uma hierarquia social. Era muito maior o
trabalho envolvido no cultivo de qualquer grão e na domesticação de
animais do que simplesmente colher, caçar e pescar. No entanto, o
sedentarismo prevaleceu. Mas por que? As vantagens são: pode-se
plantar mais do que se consome; pode-se estocar comida para o período de
inverno; pode-se trocar o excedente de um alimento de um grupo pelo
excedente de alimentos de um outro grupo. Mais pessoas comem. O
grupo, permanecendo num único lugar pode viver de maneira mais
confortável, sem ter que carregar tudo o que lhe pertence. Pode ter
abrigo permanente contra as intempéries climáticas.
Mas
nem tudo são flores. Quando se fez a troca de uma vida de caça, pesca e
colheita para uma agrícola, sedentária, o esqueleto humano mudou.
Temporariamente os homens ficaram menores, porque a dieta a que eles
estavam acostumados, rica em proteína, também mudou. Além do que, os
animais domesticados também tiveram mudanças radicais sendo menos
musculosos, oferecendo menos carne a ser degustada. Mas, mesmo assim,
insistiu-se na agricultura. Por que? É uma daquelas perguntas que
ainda não pode ser bem respondida. Há muitas teorias, entre elas a da
extinção de animais selvagens pela caça generalizada, pressões
populacionais…
Sabemos que a agricultura
começou no que chamamos de Crescente Fértil: uma região de clima
temperado, do Oriente Médio irrigada pelos rios Jordão, Eufrates, Tigre e
Nilo. Uma área muito fértil, que é o lugar de nascença da história, da
nossa história, da história da humanidade. Foi aí que mais ou menos a
14.000 anos aC os homens começavam a ter algum controle sobre a
natureza, antes mesmo de conseguirem plantar para comer, antes mesmo de
terem domínio sobre plantas e a domesticação de animais. Foi aí que o
mundo despertou. Dá-se o nome de Crescente Fértil porque essa área, em
que diversos povos chegam à agricultura, se desenhada sobre um mapa do
mundo, formaria um arco, um crescente, sobre os atuais países: Egito,
Israel, Cisjordânia, Líbano, partes da Jordânia, da Síria, do Iraque, da
Turquia e do Irã. É daí, nessa região, nas colinas suaves de Anatolia,
que nasce a agricultura e consequentemente a civilização. A uns poucos
passos de Göbekli Tepe.
Localização de Göbekli Tepe, na região mais ao norte do Crescente Fértil
É a proximidade entre o templo de Göbekli Tepe com primeiro cultivo proposital da agricultura que deixa alada a imaginação dos historiadores. O que fez a população de Göbekli Tepe
se organizar para construir um templo antes de mesmo de se organizar
para a agricultura? Obviamente havia uma necessidade emocional,
interna, uma necessidade comum aos homens, de reverenciar um deus ou
muitos, de idolatrar as forças que os governavam, para cultuar os
favores: da caça e pesca abundantes, do renascimento constante de frutos
e folhas. Com a consciência de sua insignificância, de sua pequenez
frente à natureza que os dominava, instalou-se a precisão de um culto,
dedicado a um ou mais seres, algo que aliviasse a angústia da incerteza
da vida.
Área onde foram encontradas aldeias natufianas, desaparecidas por volta de 10.000 aC
Antropólogos
há muito assumem que a religião organizada surgiu como maneira de
resolver problemas entre grupos à proporção que os nômades tiveram que
conviver com outros grupos, quando todos se tornavam vizinhos
sedentários, usufruindo das mesmas fontes de água limpa, de campos
adjacentes, transformados em pequenos fazendeiros, responsáveis pela
alimentação de seu grupo tribal. Vilarejos surgiram, imaginava-se, da
necessidade de estruturar as ações comuns que melhoravam a vida do
individuo: enterro dos mortos; abrigo à prova de animais para os
membros do grupo, o uso de plantas medicinais, e assim por diante. E
assumiu-se que só quando um uma visão de ordem celestial comum a um
grande grupo apareceu, aí sim, vieram os templos, nas aldeias e nos
vilarejos, um sistema religioso capaz de unir esses novos grupos. Mesmo
assim, já havia alguns indícios, raros é verdade, de que talvez essa
ordem não estivesse correta: há resquícios de aldeias datando de 13.000
anos aC , chamadas de Aldeias Natufianas [do período neolítico] que
surgiram no Oriente médio, particularmente nas áreas que hoje cobrem os
estados de Israel e Palestina, Líbano, Jordão e oeste da Síria. Os
habitantes dessas aldeias, que viviam em lugar permanente, não eram
agricultores, eram colhedores de sementes, de trigo, cevada e centeio,
assim como caçadores de gazelas. Como o professor Ofer Bar-Yosef, da
Universidade de Harvard apontou, a descoberta dessas aldeias foi “um grande sinal de aviso que deveríamos mudar nossas idéias”.
Mas essas aldeias neolíticas começaram a desaparecer por volta de
10.200 aC, quando houve uma pequena idade do gelo, com a queda da
temperatura local por mais ou menos 11º centígrados. As aldeias
Natufianas certamente sugerem que a organização em aldeias veio anterior
à agricultura.
Beidha, aldeia netufiana, no sul do Jordão, perto de Petra
À medida que Karl Schmidt organiza e reflete sobre suas escavações em Göbekli Tepe
também imagina as causas do aparecimento da agricultura antes mesmo da
residência sedentária dos povos nômades. Talvez o templo tivesse sido
construído por tribos das áreas ao entorno, num raio de 150 km, que
tiveram como objetivo se agruparem, trazerem presentes e dádivas aos
deuses, ou a um sacerdote. Certamente haveria alguma ordem social, que
nos escapa hoje, que seria responsável pela construção do local e também
pela organização dos fiéis. Haveria rituais, cantos, tambores, festas. E
com o passar do tempo, da própria necessidade de alimentar os
visitantes, agrupados ali para as cerimônias, houvesse aparecido a
necessidade de garantir uma certa quantidade de comida. Teria nascido
dessa maneira a agricultura nesse canto da Anatolia, sul da Turquia, com
o cultivo mais intenso dos melhores grãos? Além das primeiras
evidências de domesticação de plantas virem de Nevalı Çori, a 30 km de Göbekli Tepe, há
muitos outros indícios deste início de tentaivas agrícolas, na mesma
região. Os porcos domesticados pelo homem primeiro aparecem em Cayounu, a
100 km de Göbekli Tepe; gado bovino, caprino e ovino foram
domesticados pela primeira vez no leste da Turquia. Todas as sementes de
trigo existentes hoje no mundo inteiro são descendentes do einkorn
kernel [Triticum boeoticum] cuja evidencia de DNA sugere ter sido domesticado próximo a Karaca Dağ , no sudeste da Turquia.
A
visão que temos hoje da região é muito diferente daquela de então. O
deserto do Curdistão era, naquela época, um lugar fértil, coberto de
vegetação. Os relevos de todo tipo de animal nas pedras no templo
atestam sobre esta abundância. Tudo indica que foi o homem, justamente
através da agricultura do período neolítico que levou à desertificação:
árvores derrubadas, o solo escorrendo com as chuvas, a terra exposta,
sem plantio. Tudo o que mantinha verde esse grande oásis à beira de uma
região de equilíbrio delicado, foi modificado e acabou sendo devastado.
Teria sido esta a primeira grande perda ecológica que tivemos?
Créditos de http://peregrinacultural.wordpress.com/
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